Marcha sobre Roma em 1922: Wiki Commons
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Pensando o fascismo no centenário da “Marcha sobre Roma” (1922-2022): Estado da arte e novas perspectivas de pesquisa

100 anos se passaram desde a Marcha sobre Roma (28 de outubro de 1922). No entanto, o fascismo é um fenômeno que mantém, quando não aumenta, seu fascínio sedutor, saindo, em muitas circunstâncias do debate científico-acadêmico para se tornar uma categoria polêmica da luta ideológico-política, basta pensar no debate sobre o suposto caráter fascista de Trump, Bolsonaro e o bolsonarismo
Nápoles, Itália
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100 anos se passaram desde a Marcha sobre Roma (28 de outubro de 1922). No entanto, o fascismo é um fenômeno que mantém, quando não aumenta, seu fascínio sedutor, saindo, em muitas circunstâncias do debate científico-acadêmico para se tornar uma categoria polêmica da luta ideológico-política, basta pensar no debate sobre o suposto caráter fascista de Trump, Bolsonaro e o bolsonarismo.

Desde os anos Vinte do século XX, não há uma geração ou uma escola de pensamento, no campo das ciências humanas, que não tenha dado sua interpretação do fascismo.

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Para os antifascistas italianos que acompanharam a ascensão de Mussolini e do seu movimento ao poder, a novidade do fascismo foi a criação de um Estado-partido único totalitário, visando mobilizar toda a sociedade civil, e incorporando a esfera privada à esfera pública[i]Petersen, Jens. The history of the concept of totalitarianism in Italy. Em Totalitarianism and Political Religions. Editado por Hans Maier. Routledge, London/ New York. 1996.

Para os liberais, de um lado, o fascismo era um trágico “parêntese” no progressivo desvelamento da liberdade na história humana[ii]Croce, Benedetto. Scritti e discorsi politici (1943-1947), Bari, Laterza, 1963. Para a Terceira Internacional, por outro lado, o fascismo era o braço armado da burguesia chauvinista e reacionária[iii]De Felice, Renzo. Il fascismo – Le interpretazioni dei contemporanei e degli storici, Bari, Laterza, 2008 .

Já logo após a Segunda Guerra Mundial, os principais paradigmas (liberal, marxista) foram submetidos a uma profunda revisão por uma nova geração de cientistas sociais, interessados ​​em compreender a essência mais profunda do fenômeno fascista.

Afinal – eles se perguntavam -, o que é o fascismo? Trata-se de um fenômeno exclusivamente italiano? É possível alargar a categoria de fascismo ao nazismo, ou também ao franquismo e ao salazarismo? Podemos falar de um fenômeno europeu, ou até de um fenômeno global entre as Duas Guerras Mundiais? O fascismo desenvolveu sua própria ideologia específica? O fascismo é autoritário ou totalitário?

Inicia-se um debate teórico e metodológico que se estende até os dias atuais. As principais contribuições destacam que o fascismo foi um projeto de “modernidade totalitária”[iv]Gentile, Emilio. Fascismo. Storia e interpretazione. Bari, Laterza, 2002 – Estado, partido único, terror e ideologia, propaganda, censura, polícia secreta, racismo e, no caso do nazismo, campos de extermínio -, que surgiu no cerne do século XX, para dar uma resposta a um complexo de problemas: a crise do Estado liberal e o fracasso de seu projeto de representação das massas produzidas pela modernidade-modernização; a tragédia da Primeira Guerra Mundial que completa a crise do Estado liberal; uma alternativa ao socialismo e ao comunismo no campo da organização do conflito capital-trabalho, pela composição do qual o fascismo pensa a um Estado-nação orgânico, centralizado e intervencionista.

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O fascismo foi tudo isso e muito mais, dado que desenvolveu sua própria específica ideologia, simbólico-mitológica, para mobilizar as massas. Uma ideologia que olha para um passado mitológico, porém, ao mesmo tempo, é plenamente projetada na modernidade do século XX. Não se trata, portanto, de um regime conservador clássico nem de um autoritarismo tradicional, embora tenha alguns pontos em comum com ambos.

O fascismo é profundamente moderno, porque manipula habilmente a informação, usando as tecnologias mais avançadas para a época, com o objetivo de dar sua versão oficial da história às massas fascinadas pela liderança carismática do Duce ou do Führer.

São algumas das aquisições mais significativas do debate sobre o fascismo. Mas ainda há muito trabalho a ser feito, como mostram estudos recentes visando colher a ampla circulação “transnacional” de ideias, intelectuais, livros e revistas fascistas, especialmente entre as duas margens do Oceano Atlântico (a circulação “transatlântica” do fascismo entre a Europa e a América Latina). Deste ponto de vista, o corporativismo torna-se um campo de análise privilegiado, pois o Estado Corporativo foi para o fascismo italiano a “terceira via” entre o liberalismo e o socialismo, a ser exportado a nível global na época entre as Duas Guerras Mundiais.

Na perspectiva dos estudos “transnacionais”, a circulação de ideias fascistas e corporativas no Brasil da “Era Vargas” ainda é um campo de pesquisa e análise bastante aberto[v]Authoritarianism and Corporatism in Europe and Latin America. Crossing Borders, António Costa Pinto & Federico Finchelstein (org.). Londres e Nova Yorque, Routledge, 2020.

Novos estudos estão mostrando que durante a “Era Vargas” a apropriação brasileira do corporativismo fascista foi um processo original e complexo, e não uma simples cópia da “Carta del Lavoro” italiana[vi]Gentile, Fabio. Echi del fascismo nel Brasile di Getulio Vargas (1930-1945). Napoli, D´Amico, 2022, em andamento de publicação. Também, são dignos de grande interessante os estudos recentes sobre a “Era Vargas”, investigada em todas suas múltiplas dimensões institucionais, políticas, econômico-sociais e culturais, a partir de documentos originais e inéditos. O resultado é um quadro muito mais articulado e rico do que aquele que a historiografia clássica nos deu. Sem falar da renovação dos estudos sobre o movimento integralista de Plínio Salgado, o primeiro grande partido de massas da América Latina[vii]Pereira, Leandro & Caldeira Neto, Odilon. O fascismo em camisas verdes. Do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro, FGV, 2020.

No campo dos estudos sobre fascismo e integralismo, é notável a categoria de “fascismo ibérico”[viii]Fascismos ibero-americanos, Gabriela de Lima Grecco & Leandro Pereira (org.), Madrid: Alianza Editorial, 2022 , no caminho aberto pelos estudos sobre o fascismo como fenômeno transnacional, cujo principal mérito é reconstruir a rede de relações ideológicas, políticas, culturais e religiosas dos diferentes movimentos fascistas, e de extrema-direita que se reconhecem na matriz comum ibérica (espanhola e portuguesa), de que a Igreja Católica foi uma poderosa difusora, sobretudo nos Países Latino-americanos, de colonização espanhola, basta pensar na Argentina.

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Finalmente, cem anos se passaram desde a “Marcha sobre Roma”. Muito foi feito na compreensão do fenómeno fascista, muito ainda tem que ser feito, sobretudo na análise da sua dimensão de fenómeno que pretende dar uma resposta “inter-transnacional” às profundas mudanças provocadas pela Primeira Guerra Mundial a nível global.

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Notas de rodapé

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i Petersen, Jens. The history of the concept of totalitarianism in Italy. Em Totalitarianism and Political Religions. Editado por Hans Maier. Routledge, London/ New York. 1996
ii Croce, Benedetto. Scritti e discorsi politici (1943-1947), Bari, Laterza, 1963
iii De Felice, Renzo. Il fascismo – Le interpretazioni dei contemporanei e degli storici, Bari, Laterza, 2008
iv Gentile, Emilio. Fascismo. Storia e interpretazione. Bari, Laterza, 2002
v Authoritarianism and Corporatism in Europe and Latin America. Crossing Borders, António Costa Pinto & Federico Finchelstein (org.). Londres e Nova Yorque, Routledge, 2020
vi Gentile, Fabio. Echi del fascismo nel Brasile di Getulio Vargas (1930-1945). Napoli, D´Amico, 2022, em andamento de publicação
vii Pereira, Leandro & Caldeira Neto, Odilon. O fascismo em camisas verdes. Do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro, FGV, 2020
viii Fascismos ibero-americanos, Gabriela de Lima Grecco & Leandro Pereira (org.), Madrid: Alianza Editorial, 2022

Referências

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Cite-nos

Gentile, Fabio. Pensando o fascismo no centenário da “Marcha sobre Roma” (1922-2022): Estado da arte e novas perspectivas de pesquisa. Forca de Judas, Porto Alegre, v. 2, n. 3, 2022. Disponível em: <https://revista.judasasbotasde.com.br/322022/pensando-o-fascismo-no-centenario-da-marcha-sobre-roma-1922-2022-estado-da-arte-e-novas-perspectivas-de-pesquisa/>. Acesso em 21-10-2024

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