Constituição Federal de 1988: Agência Brasil
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Constituição é legitimidade: ma non troppo

Com a Constituição Federal de 1967, não foi diferente. Embora repudiada e esquecida no rol das cartas constitucionais brasileiras, dela se esperava também o apoio básico para estruturar o país que se tinha então. No entanto, seu texto, com 189 artigos, enxuto se comparado ao atual, foi elaborado por uma legislatura dita “tradicional”, tanto sob o ponto de vista formal, quanto do ângulo das ditaduras latino-americanas
Rio de Janeiro, Brasil
jorgerocha@judasasbotasde.com.br

Como se sabe, uma Constituição é a pedra de toque para dar forma a um Estado e a um governo. É ela que estabelece o como se adquire e exerce o poder, como se institui e organiza os órgãos estatais e governamentais, os “limites de suas atuações, da amplitude dos direitos fundamentais e suas respectivas garantias e da ordem econômica e social”, como nos ensinam nos bancos escolares (MORAES, 2004).

Com a Constituição Federal de 1967, não foi diferente. Embora repudiada e esquecida no rol das cartas constitucionais brasileiras, dela se esperava também o apoio básico para estruturar o país que se tinha então. No entanto, seu texto, com 189 artigos, enxuto se comparado ao atual, foi elaborado por uma legislatura dita “tradicional”, tanto sob o ponto de vista formal, quanto do ângulo das ditaduras latino-americanas. O parlamento funcionava, apesar de aleijado em sua composição, pois, seja “pela palavra mais viva na crítica”, seja “pela contundência da denúncia ou simples capricho de algum poderoso eventual” (IGLESIAS, 1987, p. 87), vários parlamentares haviam sido cassados. O que, naturalmente, repercutiu em sua organização e, especialmente, no seu sentido e espírito.

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A Constituição de 1967 não seguiu a linha liberal dos documentos similares anteriores. Se aproximou muito, pelas “intenções”, da Carta de 1937; aquela que deu sustentação a ditadura do “Pai dos Pobres”. A professora Rosalina Araújo afirmou que, “pela primeira vez na história do Brasil, a questão da segurança nacional foi tomada por uma Constituição como uma questão de Estado, que permeou todos os poderes da República”. Com base nesta questão, o exercício do Poder Executivo era autoritário, apoiado basicamente em atos institucionais, retirando as responsabilidades de outros poderes (2004, p. 319).

Sobre seus aspectos jurídicos mais gerais destaca-se aqui o que se considerou peculiaridades: a exagerada ênfase na competência da União, objeto de cinco artigos, “com muitos parágrafos e incisos”, enquanto estados e municípios têm só quatro artigos a defender suas prerrogativas, “com bem menos parágrafos e incisos”. A segurança nacional – como já se disse – e as Forças Armadas recebem atenção especial. Afinal, nas cercanias da primeira e da atuação das segundas, gira a vida do período.

O caráter autoritário do documento é evidenciado, por exemplo, nas disposições gerais e transitórias. O artigo 1.º diz, textualmente: “ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964”. O questionamento legal aos atos, tantas vezes arbitrários, das autoridades governamentais estava prejudicado, por conta dos obstáculos colocados pelos legisladores.

Claro que muitas vezes, o conceito de segurança nacional era interpretado de modo suficientemente elástico para prender junto aos interesses de todos, os anseios inconfessáveis de grupos e/ou pessoas apaniguados pelo poder. Afinal, ser do “centrão” é uma prática recorrente na política brasileira; faça chuva de “rebenques e esporas” ou sol de “foices e martelos” ou vice-versa.

Com o mesmo intento, o uso deliberado de expressões jurídicas abertas e discricionárias no texto constitucional facilitavam a intervenção em direitos e garantias específicas, fundamentais. O que fornecia um álibi ao arbítrio. O direito positivado serviu, assim, de disfarce para as autoridades agirem de forma violenta, de acordo com interesses casuísticos, porém dentro da “lei”. Uma bem urdida estratégia que permitia “a atuação intervencionista e conservadora sobre o povo” (SGANZERLA, 2017, p. 114).

A derrubada do governo de João Goulart (1918-1976), foi provocada por um movimento militar, liderado pelos generais Olímpio Mourão Filho (1900-1972) e Carlos Luís Guedes (1905-1976) e pelo marechal Odílio Denis (1892-1985), com o farto apoio de setores conservadores da sociedade brasileira e do não muito discreto governo dos Estados Unidos da América – o velho Tio Sam que, desta vez, não estava só “querendo conhecer a nossa batucada”.

Com o golpe – que basbaques ainda chamam de “revolução” –, se instalou um regime político marcado pelo autoritarismo, pela imposição de censura prévia, pela intimidação dos adversários e pela supressão de direitos. Tudo isso afiançado na modernização da economia, fincada – por sua vez – na abertura ao capital estrangeiro; no endividamento externo para investimentos em grandes obras públicas etc. Para que atentar ao acentuado desequilíbrio social que patrocinava? – como se seus títeres se importassem…

Entretanto, o bloco então encastelado no poder não se esquivou de utilizar alguns instrumentos jurídicos aparentemente democráticos para simular normalidade e – por que não dizer? – legitimidade para seu governo, mesmo perante as ações autoritárias que executava, como prisões arbitrárias e perseguição aos grupos identificados como ameaçadores à nova ordem. O arbítrio abrigado na legislação é “chapa branca” desde sempre….

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Não é surpresa que o processo de elaboração da Constituição tenha sido cercado de todo um aparato normativo que direcionou e (de)limitou as discussões. Em abril de 1966, por exemplo, Castelo Branco assinou um decreto instituindo comissão especial de juristas para o projeto de texto constitucional. Essa comissão foi composta pelo jurista Levi Fernandes Carneiro (1882-1971); pelos ministros do Supremo Tribunal Federal Orosimbo Nonato da Silva (1871-1974) e Miguel Seabra Fagundes (1910-1993); e, pelo professor Temístocles Brandão Cavalcanti (1899-1980).

Este seleto grupo iniciou seus trabalhos prevendo: (a) “a revisão das emendas constitucionais e dos dispositivos de caráter permanente dos atos institucionais, de modo a coordená-los e inseri-los no texto da Constituição Federal”; (b) a exclusão “do ato das disposições constitucionais transitórias os preceitos de vigência já esgotada, incluindo os dos atos institucionais da mesma natureza, com as alterações adequadas”; e (c) “sugerir emendas à Constituição que, imprimindo ao seu contexto unidade e harmonia, contribuam para a evolução do processo democrático brasileiro e garantam, na vida pública, regime de austeridade e responsabilidade.” (REIS, 2021; CALICCHIA, 2021, p. 420; IGLESIAS, 1987, p. 73).

Carlos Medeiros Silva (1907-1983), ministro da Justiça, após receber e examinar o projeto, o teria considerado “fraco, conservador, não-revolucionário” e o alterou bastante. O resultado desta intervenção, que contou com o auxílio do jurista e professor Francisco Luís da Silva Campos (1891-1968), foi publicado no começo de dezembro; em 1966 – mês que corre e cuja lembrança ensejou este artigo.

No entanto, o texto alternativo suscitou protestos de intelectuais e políticos. Para fazer calar as queixas, o governo fez o que sabia fazer de melhor: editou o Ato Institucional n.º 4. O Congresso foi convocado e permaneceu em sessão extraordinária de doze de dezembro de 1966 a quatro de janeiro de 1967. em E, pouco mais de vinte dias, discutiu, votou e promulgou a nova Carta. A oposição – consentida, diga-se –, se manifestou contra o projeto. Sem maiores, consequências.

Nascida, em 24 de janeiro de 1967, e programada para entrar em vigor no governo seguinte, já naquela época, sofreu forte contestação nos meios sociais, políticos e jurídicos. Como de praxe, o governo calou a discordância pela força: em 13 de dezembro de 1968, veio o Ato Institucional n.º 5. Na prática, a Constituição de 1967 foi derrogada sem maiores delongas. “Restou o telegrama de protesto dirigido ao presidente da República por 22 senadores”. Entre eles, “o presidente do Senado, Gilberto Marinho; o líder do [próprio] governo, Daniel Krieger; e, o relator-geral do projeto constitucional Antônio Carlos Konder Reis (REIS, 2021).

Mas, não se enganem. Muitos foram também os que defenderam o texto constitucional. Juristas de destaque, como Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979), Paulino Ignácio Jacques (1909-1994) e Paulo Sarasate Ferreira Lopes (1908-1968), a elogiaram em obras de peso (REIS, 2021). Flávio Bauer Novelli, (1925-2018) então diretor da Faculdade de Direito do Estado da Guanabara – incorporada posteriormente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) –, chegou a dedicar a ela o tema da aula inaugural do Curso de Direito daquele ano (NOVELLI, 1968, p. 12).

Muitos aderiram não por mero adesismo, como “Maria-vai-com-as-outras” – que sempre existem em todas ocasiões e matizes –, mas porque acreditavam verdadeiramente na força como ideal político e comungavam com as arbitrariedades. Aliás, como todo ávido colecionador/cultivador de abobrinhas e fatos irrelevantes sabe, a favor de Maria é bom que se diga que ela só ia com as outras porque era “louca”. O que muitos que o fazem, não são.

Dois anos depois, em 1969, a Emenda Constitucional n.º 1, aprofundaria a “dimensão repressora do regime” (ROCHA 2013, p. 33). A Constituição de 1967 seria esquecida, mas seu impacto permaneceu devastador. As ondas deste podem ser divididas, na opinião de alguns estudiosos, em três momentos. O primeiro, que correspondeu aos chamados “anos de chumbo”, contido no período do governo Emílio Médici (1905-1985). O seguinte, quando se iniciou o lento processo de distensão política, durante as administrações Ernesto Geisel (1907-1996) e João Figueiredo (1918-1999). O último ato, entabulado na derrota do partido de apoio ao regime, a ARENA, nas eleições indiretas para a Presidência da República e a escolha de um Presidente civil, transcorreu ao longo do governo de José Sarney, já se encontrando exaurida a Ditadura (LEITE, 2021, p. 9).

A legitimidade, que foi tão importante para os grupos que detinham o poder político no Brasil daquele período – como parece demonstrar a preocupação obsessiva que se tinha para com a elaboração de documentos legais em profusão –, tem caráter racional sim e se apoia na convicção da força na legalidade dos ordenamentos. É base do Direito, dar ordens aos que são chamados ao exercício do domínio. Se presta obediência a ordem estabelecida legalmente – por exemplo, em uma Constituição –, só quando esta ordem se legitima pelo apoio em tal legalidade. Daí a inter-relação entre legitimidade e legalidade. Um cachorro a correr atrás do próprio rabo…

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O texto constitucional criou uma aparência de legalidade – ainda que meramente formal – para um regime de governo claramente ilegítimo. Garantiu, por assim dizer, uma “estabilidade” ao processo de dominação política da sociedade brasileira e revestiu o governo de uma certa legitimidade – ainda que pelos padrões usuais da democracia não a tivesse. Seus ditames pautaram – até certos limites – os embates entre os diferentes grupos que interagiam no poder, concedendo à Ditadura Civil-Militar o mínimo de perenidade; de continuidade. Era um mecanismo para legitimar o arbítrio discricionário – que – ainda assim – tantas vezes foi ultrapassado, pelas forças de repressão, principalmente nas fases em que foi mais contestado.

Nestes tempos em que membros da mais alta corte judiciária são escolhidos não tanto pela “ilibada reputação” ou pelo “notório saber”, mas também pela sua filiação político-religiosa, façamos como o nonagenário capitão James T. Kirk, após se aposentar do seu eterno papel de William Shatner: “rezemos aos audazes”*. Abracemos aqueles que lutam – com coragem que não acreditavam ter – para não permitir que nossa “lei maior” seja corrompida por artimanhas legais ou simplesmente descartada por aqueles que não sabem ou não querem saber viver a democracia.

*Em uma de suas biografias (1998, p. 16), o ator William Shatner – hoje com 90 anos – descreveu a enorme dificuldade que teve para conseguir papéis em outras séries de televisão após o encerramento de Star Trek (“Jornada nas Estrelas”), em 1969. A força da imagem do capitão Kirk não permitia que os produtores o considerassem para outros personagens. Anos depois, já reconciliado com a fama e com o famoso herói, ele coestrelou um drama chamado “Rezemos pelos Audazes” (Pray for the Wildcats, 1974), dirigido por Robert Lewis, e cultuado por muitos.[i]Em uma de suas biografias (1998, p. 16), o ator William Shatner – hoje com 90 anos – descreveu a enorme dificuldade que teve para conseguir papéis em outras séries de televisão após o … Ver fonte

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Notas de rodapé

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i Em uma de suas biografias (1998, p. 16), o ator William Shatner – hoje com 90 anos – descreveu a enorme dificuldade que teve para conseguir papéis em outras séries de televisão após o encerramento de Star Trek (“Jornada nas Estrelas”), em 1969. A força da imagem do capitão Kirk não permitia que os produtores o considerassem para outros personagens. Anos depois, já reconciliado com a fama e com o famoso herói, ele coestrelou um drama chamado “Rezemos pelos Audazes” (Pray for the Wildcats, 1974), dirigido por Robert Lewis, e cultuado por muitos

Referências

  1. ARAÚJO, Rosalina C. Estado e Poder Judiciário no Brasil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.
  2. CALICCHIA, Vera. Atos Institucionais (AIs). Verbete temático. Em: ABREU, Alzira A. (Coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós 1930. 2.ª ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, I, 2001, p. 418-422.
  3. IGLESIAS, Francisco. Constituintes e constituições brasileiras. 4.ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  4. LEITE, Gisele. Considerações sobre as Constituições brasileiras de 1967 e 1969. Em: Jornal Jurid. Disponível em: <https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/consideracoes-sobre-as-constituicoes-brasileiras-de-1967-e-1969>. Acesso: out. 2021.
  5. MORAES, Guilherme P. Direito constitucional: teoria da Constituição. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.
  6. NOVELLI, Flávio B. A relatividade do conceito de Constituição e a Constituição de 1967. Em: Revista Forense. Rio de Janeiro: Empreza Revista Forense, 218, 1968.
  7. REIS, Antônio C. K. Verbete-Temático Constituição de 1967. Em: ABREU, Alzira A. (Coord.). Dicionários. Acervo FGV. CPDOC. Disponível em: < http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/constituicao-de-1967>. Acesso em: mai 2021.
  8. ROCHA, Antônio S. (2013). Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização. Em: Lua Nova. São Paulo, 88, p. 29-87.
  9. SGANZERLA, Rogério. De que lado a Constituição brasileira estava? Uma análise do rol de direitos e garantias fundamentais vigentes durante o regime militar no Brasil. Em: Revista de Direito Constitucional Internacional e Comparado. Governador Valadares: Faculdade de Direito da UFJF, vol. 1, n. 1, 2017, p. 90-117.
  10. SHATNER, William; KRESKI, Chris. Jornada nas estrelas: memória dos filmes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

Cite-nos

Rocha, Jorge. Constituição é legitimidade: ma non troppo. Forca de Judas, Porto Alegre, v. 3, n. 1, 2022. Disponível em: <https://revista.judasasbotasde.com.br/312022/constituicao-e-legitimidade-ma-non-troppo/>. Acesso em 06-12-2024

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