Manifestantes ocupam a Esplanada dos Ministérios: Juca Varella/Agência Brasil
13 min.

“O Processo”: Teatro de Sombras no documentário político brasileiro

O filme acaba ficando tão sombrio quanto seu material, e prenunciando uma catarse que geralmente provocou medo e assombro em todos os públicos, inclusive internacionais, uma vez que devemos lembrar que “O Processo” não apenas é um dos documentários de maior bilheteria no circuito comercial brasileiro
Rio de Janeiro, Brasil
filippopitanga@judasasbotasde.com.br

Recém estreado na Netflix, vamos aproveitar para nos debruçar mais a fundo no novo cult brasileiro: “O Processo” de Maria Augusta Ramos (2018), documentário crucial que reflete sobre o impeachment de 2016.

É na última terça parte do filme que acontece talvez a cena a materializar de modo mais fidedigno a analogia que seu título carrega, com o livro homônimo de Franz Kafka: O tribunal do absurdo. Apesar de toda a projeção carregar uma conotação estética muito forte com isso, emprestada dos filmes de tribunal e de trâmites processuais de justiça, algo comum à filmografia de Maria Augusta Ramos (como nos filmes “Justiça” de 2004 e “Juízo” de 2007), é na sequência do interrogatório de Dilma Rousseff que alcança seu ápice.

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Hoje, possuímos alguma visão privilegiada sobre os acontecimentos daquela época. Se, então, a ciência clara e transparente dos fatos não podia ser totalmente oferecida, obscurecida pela extrema polarização ideológica de lados opostos, que soterrava fatos e evidências sobre camadas de mútuas agressões deliberadas, mais reativas do que propositivas, agora alguns dos mesmos fatos mudaram de luz. Atos outrora considerados infrações, ou mesmo questionados como crime de responsabilidade fiscal ou não (como as chamadas “pedaladas fiscais”), foram posteriormente relativizados, como com a Lei 13.332/2016, sancionada pelo Governo de Michel Temer dois dias após o Impeachment ser efetivado, flexibilizando as regras para abertura de créditos suplementares sem a necessidade de autorização do Congresso.

Grosso modo, a letra autorizava as pedaladas fiscais, justificativa do afastamento de Dilma Rousseff, pelo Senado. A Lei tem origem no Projeto do Congresso Nacional (PLN) 3/16 e foi aprovada no dia 23 de agosto de 2016. O texto autoriza o governo a reforçar, por decreto, até 20% do valor de uma despesa prevista no orçamento de 2016, mediante o cancelamento de 20% do valor de outra despesa. Até então, o remanejamento era restrito a 10% do valor da despesa cancelada.

“Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais abertos ou reabertos, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de superávit primário estabelecida para o exercício de 2016”, destaca o artigo 4º da Lei.

Segundo a Agência Senado, o governo não eleito alegava que a mudança na lei torna a gestão orçamentária mais flexível, podendo haver, inclusive, o remanejamento de despesas para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De acordo com os argumentos legais utilizados para o impeachment, Dilma foi afastada de seu mandato como presidenta exatamente por ter usado os créditos suplementares sem a autorização do Congresso. 

Em outras palavras, aquilo que antes poderia ou não ser considerado crime, durante todo o processo de Impeachment, de fato não havia sido utilizado da forma mais objetiva ou irrefutável, escamoteado sob camadas e camadas de alianças e chantagens políticas entre as forças envolvidas… O que só reforça a analogia com o julgamento do absurdo de Kafka. Além de ter uma força acusatória cercada de aleturgias abstratas, nas palavras de Michel Foucault (2020), proféticas ou divinatórias, que evocavam desde o Estado de Israel aos preceitos supostamente vinculados ao valores familiares de um padrão único e imposto sobre as diferenças e pluralidades sociais. Como se o Impeachment da então presidenta Dilma Rousseff fosse justificado por razões ocultas e míticas que outorgariam uma força divina, e não calcada de fato no Estado Democrático de Direito, mas tão somente baseada num discurso de ódio ao outro.

O Processo, 2018: Divulgação

É desta narrativa que talvez advenha um dos maiores elementos de ligação da obra, de uma de suas sequências iniciais até a cena do interrogatório, e que interligam os cartazes do filme ora anexados acima no presente texto: O momento da votação do Congresso Nacional quando o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro justificou seu voto pelo Impeachment na Câmara dos Deputados, em 17 de abril de 2016, fundamentando-se em ode a Carlos Alberto Brilhante Ustra. Este foi um coronel do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos órgãos atuantes na repressão política, durante o período da ditadura militar no Brasil, e torturador condenado – e tendo, inclusive, sido um dos torturadores da então presidenta Dilma Rousseff. Com isso, o então deputado federal Jair Bolsonaro, ora presidente eleito do Brasil a partir desta mesma narrativa, justificaria seu discurso de ódio através da sanção de violência, como se os trâmites legais brasileiros legitimassem o castigo corporal a qualquer indivíduo que pudesse estar fora de um padrão imposto, mesmo que de forma transitória. O diferente não poderia existir e deveria ser exterminado. Segundo esta corrente, seríamos uma República da diferenciação cadavérica e fantasmagórica da pluralidade silenciada…

Eis que esta é a peça que junta todos os sentidos produzidos no filme “O Processo” de Maria Augusta Ramos, no campo e extracampo, materializando uma estética de terror político contemporâneo, onde princípios constitucionais como a presunção de inocência e devido processo legal seriam relativizados em nome de um Estado autoritário e execucionista, tudo exemplificado nas cenas do filme, a partir de uma cidadã que, naquele momento, representava a todos os demais, ética e esteticamente: a própria presidenta da República. Antes militante civil como qualquer um, presa política, torturada, e ora subjugada por um processo arbitrário que não julgava de fato o mérito, que poderia até ser devido (ou não), mas cuja sentença condenatória já era prevista antes mesmo de quaisquer possibilidades de defesa. Um acuamento histórico que representava dois tempos, o da Ditadura Militar Brasileira e o do Impeachment de 2016, duas singularidades temporais associadas e integrada no mesmo espaço, em temporalidades diferentes, porém semelhantes. Um duplo. Um breu do passado no presente e que se prolonga no futuro. Memórias vivas, que ressoam na Câmara e no Senado como um teatro de sombras e ecos.

A estética do teatro de sombras e ecos

Essa colocação do duplo existe de algumas formas pelo filme “O Processo” de Maria Augusta Ramos (2018) como um todo, porém é na sequência de interrogatório que ele se coloca de modo mais pronunciado e tridimensionalizado, como para além da imagem, como também no desenho de som e na construção dos cortes secos da montagem e do que não é mostrado nos enquadramentos da fotografia. O que não é mostrado é tão importante quanto o que está diante da câmera, e alude a tempos diferentes que se encontram ali, como num teatro de sombras, de duplos.

Poderíamos, aqui, entender Duplicação como “Réplica de um sujeito consciente pelo seu duplo em imagem” (KRAUSS, 2002, p.184). Se o próprio Processo planejava contrapor a pessoa interrogada com seu duplo histórico, como se isso fosse enfraquecê-la diante da associação com tempos históricos vulnerabilizantes, haveria de se levantar a questão de quais forças estariam de fato operando ali, e quem deteria algum tipo de poder sobre elas. E isto em dois momentos, no da captação das imagens pelo filme, no tempo ao vivo, bem como no tempo revisto, aquele da projeção do filme pronto, que permite outras associações com o olhar delongado sobre suas analogias.

Poderia o cinema ressuscitar o instante consumado e ressignificar associações feitas no tempo presente? Qual seria a força da câmera como testemunha, funcionando ou não como intermediadora, ou, no caso de um cinema mais observacional como da cineasta Maria Augusta Ramos, mais efetivo em sua edição e paralelos criados na fotografia e montagem. De que forma os paralelos se entrelaçariam de modo a criar um olhar opositivo à imposição de um sentido único pela imposição histórica daquele momento?

Os mecanismos do cinema não são estranhos à imagem que falta, parafraseando o cineasta cambojano também documentarista Rithy Panh. Imagem esta que não falta de forma inconsciente ou involuntária, mas como uma provocação, uma perturbação ou afetação intencional para desengatilhar outras instâncias por sob as imagens. E estas sombras do passado ou ecos no presente podem ser encontrados na força com que o cinema capturou as imagens do interrogatório da então presidenta Dilma Rousseff.

“Certamente, o que atraía essas massas às salas escuras não era qualquer promessa de conhecimento, mas a possibilidade de realizar nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se com os fantasmas interiores e de colocar em operação a máquina do imaginário.” (MACHADO, 2011, p.16)

Porém, outra questão de ordem linguística se coloca diante de nós, antes mesmo de se debater a questão estética, que seria o fato de o cinema documental se propor objetivo, frio, racional, especialmente o cinema observativo de cineastas como Maria Augusta Ramos, e não necessariamente lúdico ou lírico. Se a câmera predominantemente objetiva deseja não influir na imagem captada, ou apenas o mínimo no que for possível, de que forma esta experiência passou a representar ou não o horror da política atual? Poderia a câmera observadora, como apenas uma pequena mosca na parede, ser uma esponja a absorver inevitavelmente o que ocorre ao redor? A própria Maria Augusta Ramos evoluiu a forma com que via seu próprio filme e passou a assumir suas facetas de gênero, como denominando sua obra com termos híbridos do naipe de “thriller político” ou “horror político”. Um reconhecimento que reflete pesquisas agregadas com o tempo do filme, com o presente estudo deste trabalho.

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Se para a então presidenta Dilma Rousseff poderia significar algo da ordem do pesadelo reviver os momentos de tortura de um Estado absolutista durante a Ditadura Militar Brasileira, ora evocada e celebrada por votos como o do então deputado federal Jair Bolsonaro, para o cidadão brasileiro, ora espectador do filme “O Processo” (2018), a revisitar aqueles mesmos momentos como se a ode à tortura sancionasse um novo tipo de governo, decerto traria algo de fantasmagórico e tétrico para uma sensação de identificação compartilhada na perda de direitos coletivos. Se uma pessoa pode ser torturada, todas também podem ser. E essa estética do medo e da violência decerto alude a uma instância onírica de um pesadelo, pois justamente não se trata de uma ficção na tela, e sim de um documentário registrando algo em tempo real. “As películas que melhor representam o sonho são aquelas em que o conteúdo onírico é tratado com espessura de evento real, (…), em que há embaralhamento entre o vivido e o imaginado.” (MACHADO, 2011, p.43). Ou seja, o documentário se encontraria numa posição privilegiada, até mais do que talvez a ficção pura e simples, para fazer uma ponte entre a realidade e o delírio desta, uma distorção vertiginosa provocada pela agência de elementos reais – a verdadeira fábrica de pesadelos: a vida.

“Supunham os intelectuais do século XIX que o cinema seguiria a fotografia na sua função de “registro” documental, mas foi o contrário que aconteceu. O novo sistema de expressão, assim que ganhou forma industrial, impôs-se esmagadoramente como território das manhas do imaginário, mantendo-se fiel aos seus ancestrais mágicos pré-industriais (que o diga Méliès, argonauta por excelência dos mares e abismos interiores). A história efetiva do cinema deu preferência à ilusão em detrimento do desvelamento, à regressão onírica em detrimento da consciência analítica, à impressão de realidade em detrimento da transgressão do real. O poder da sala escura de revolver e invocar nossos fantasmas interiores repercutiu fundo no espírito do homem de nosso tempo, este homem paradoxalmente esmagado pelo peso da positividade dos sistemas, das máquinas e das técnicas. Antes mesmo que o capital financeiro disciplinasse os seus mergulhos nas regiões mais obscuras do espírito, antes mesmo que ele resultasse numa próspera indústria da cultura, o cinema já era visto como um local suspeito, onde alguma espécie de iniquidade corrosiva ameaçava vir à tona e se insinuar por toda parte. Arte do simulacro, da aparência, que põe a pulular duplos, “cópias degeneradas” como diziam os filósofos, verdadeiro império dos sentidos, para onde uma população inicialmente marginalizada e ofendida acorria em bandos em busca de evasão e refúgio, ele fará o necessário contraponto de trevas a uma época de ofuscamento racional.” (MACHADO, 2011, p. 20)

Ou seja, por analogia, se o filme “O Processo” retratava uma derrota política e de direitos jurídicos sob uma imposição autoritária, aludindo ao tempo da Ditadura Militar Brasileira, esse jogo de espelhos da direção de fotografia provocado pelo cinema e sua montagem poderia ser crucial para rever a história sob o ponto de vista dos “derrotados”, os oprimidos, os torturados, os fantasmas da cena, que talvez no momento da captação das imagens fílmicas não tivesse o mesmo potencial de projetar a sua voz e reflexões, ora ante o cruzamento de dados que a montagem cinematográfica poderia revisitar.

Estes duplos e sombras do passado que perduram nas cenas do filme decerto não foram acidentais. Existem marcadores durante toda a projeção que insinuam um crescendo para desembocar em tal analogia. Não apenas de uma forma, como as palavras de apologia à tortura, porém de muitas mais. Há de exemplo as justificativas aletúrgicas da votação inicial na Câmara dos Deputados, que abre o longa-metragem, e que foi amplamente associada depois na mídia com um “circo dos horrores” (afinal, evocar religiosamente ao Estado de Israel para validar uma decisão política em território brasileiro é tanto um contrassenso quanto ilegal, já que a Lei de nosso Estado é Soberana e constitucionalmente laica, não podendo sofrer influências de estados estrangeiros, nem que apenas em sua instância religiosa).

Ou seja, os horrores do tempo real filmado na câmera acabam por impregnar o dispositivo cinematográfico, e as sombras em disputa na produção de sentidos acaba por permear a própria linguagem da narrativa. O filme acaba ficando tão sombrio quanto seu material, e prenunciando uma catarse que geralmente provocou medo e assombro em todos os públicos, inclusive internacionais, uma vez que devemos lembrar que “O Processo” não apenas é um dos documentários de maior bilheteria no circuito comercial brasileiro (já que documentários não costumam se tornar sucessos de audiência), bem como um dos mais premiados nos Festivais internacionais – comprovando que outras culturas, línguas e ordenamentos jurídicos conseguiram compreender e se identificar igualmente com isso.

Mas não só de assombro foi feito o conteúdo da obra, como também de lágrimas que limparam a alma de muita gente, pois, apesar de ser uma narrativa pessimista de derrota, não foi do ponto de vista dos supostos vencedores que a história foi contada, e sim dos tidos como derrotados – o que seria uma vitória se custa a sua moral e ética? Quem seriam os verdadeiros vencedores morais? Só a história dirá, porém, com certeza, muitos dos que também se sentiram injustiçados com o desmantelamento de direitos prenunciados na telona puderam se projetar na vitória moral dos excluídos, ora exaltados. E isto apenas o dispositivo fílmico poderia fazer, diferente de um telejornal ou de outras mídias audiovisuais. Apenas no cinema a autoralidade e o prisma de uma imagem cristal, nas palavras de Gilles Deleuze (2005), poderiam agregar pontos de vista em cuja resultante poderia criar tensões que desestabilizassem verdades pré-estabelecidas e unidimensionais.

Apenas o cinema consegue criar essa dialética imagética como próprio de seu dispositivo, mesmo que o efeito também ser encontrado em outras causas, mas como meta essencial a ser almejada pela linguagem cinematográfica e que a enobrece. A grosso modo, ao falarmos de sombras, como se comparássemos a sala escura do cinema com a alegoria da Caverna de Platão, e a luz do mundo das ideias como um projetor a nos trazer as sombras por trás das silhuetas como um espetáculo redimensionado da realidade, onde podemos rever os fatos como possibilidade de catarse fantástica, invertendo as polaridades. Afinal, se a realidade se tornou a distorção do terror político verídico da contemporaneidade, o cinema é a possibilidade de inversão e revisão histórica com olhos livres destas mesmas distorções, sem mentiras, aquiescendo e abraçando as distorções como elas são, sombras da realidade, simulacros com os quais podemos lidar, de dentro para fora, já que não conseguimos dar conta da realidade de fora pra dentro.

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Eis a ideia do duplo, algo que, uma vez espelhado, pode ser visto, aquiescido, encarado e enfrentado de frente. Se o duplo nos provoca a encarar nossas próprias sombras, ao mesmo tempo nos ameaça a poder dissolver no meio de nosso entorno junto com nossas sombras, de tal modo a que nos sintamos perdidos. “Explica-se: a vida do organismo depende da possibilidade de manter sua própria diferença, a fronteira que o envolve, a possessão de si!” (KRAUSS, 2002, p.184).  Ou seja, se as sombras ocuparem todos os espaços, o meio se torna indistinto ao sujeito, não delineado, sem agência. “Quando perde essa fronteira e mimetiza o meio, fica despossuído, destituído de sua realidade, como se cedesse a uma tentação exercida sobre si mesmo pela vasta exterioridade do próprio espaço, a tentação de fusão.” (KRAUSS, 2002, p.184-185).

Este meio ameaçador da individualização, no filme “O Processo”, está representado por muitas vozes durante o filme inteiro. Vozes que se sobrepõem, vozes no extracampo, uma cacofonia perturbadora de acusações e sandices injustificadas ou destiladas em puro ódio. Porém, o principal momento que se desvelam como antagonistas enunciadas decerto é nas cenas em torno do interrogatório da então presidenta Dilma Rousseff. Os próprios inquisidores aludem a todo momento a um lugar de vulnerabilização em que a interrogada se colocaria, justamente por remetê-la a um processo arbitrário e discricionário do tempo de sua prisão política e estritamente ideológica durante a Ditadura Militar Brasileira. Este talvez fosse o momento mais aterrorizante do filme…

“Necessário é acrescentar ainda o que pode ter a sua importância: diante do que se passa no interior da caverna, a voz, as palavras, essas palavras que parecem emanar das próprias sombras que desfilam ao longo da parede, não têm um papel discursivo, conceitual; elas não servem para comunicar mensagem alguma; elas pertencem à realidade sensível que está presente para os prisioneiros tanto quanto as imagens; elas jamais se desligam destas; elas estão definidas pelo mesmo modo de existência e são tratadas da mesma maneira que no sonho, fragmentos de discurso realmente existidos e entendidos, arrancados de seu contexto e possuindo a mesma função que as outras representações do sonho. (Baudry 1975, p. 61)” (MACHADO, 2011, p.26)

Todavia, eis que a autoconsciência do lugar que ocupa naquele instante transitório do tempo, de interrogada, não de vítima, e justamente pela reiteração de um espaço que já foi muito pior, de tortura física e psicológica, é a mesma medida que faz da então presidenta Dilma Rousseff naquela situação não a subjugada, mas a própria exaltação dos excluídos. Ela possui total controle da situação duplicada, justamente por já ter passado anteriormente por aquilo, e deixa de ser objeto da cena para passar a ser sujeito que olha de volta: “O sujeito que olha se define como projeção, como um sendo-visto, subjetividade do olhar” (KRAUSS, 2002, p.186).

A repetição do duplo nesta sequência do filme “O Processo”, do duplo aparente e o não aparente, evocado no extracampo fílmico, da memória da Ditadura evocada por toda a projeção e mais explicitamente pelos cartazes do longa-metragem, desemboca numa inversão da experiência. Os acusadores se tornam objeto de acusação fílmica, se desvelam apopléticos, se já não o fossem por si só, mas agora como catarse fílmica na câmara escura invertida. O interrogatório no Senado vira uma câmara de espelhos, em que os acusadores se perdem nas suas próprias sombras. “O que de mais informe em perder as formas das coisas senão perder as fronteiras e o limite de si mesmo procurando outro sentido perante o meio?” (KRAUSS, 2002, p. 184). Esse sujeito deixa de ser o que vê e passa a ser o que é visto, apagando as fronteiras imediatas, onde se encontra despossuído.

“A dimensão visual aqui era um domínio vindo do exterior imposto ao sujeito, preso nas malhas de representação, galeria de espelhos (…) Nada melhor pra fotografia do que a repetição labiríntica, o jogo de reflexos, a própria fotografia um espelho da memória (expressão do século XIX)”. (KRAUSS, 2002, p.187)

Em outras palavras, a então presidenta Dilma Rousseff, uma vez dissociada da carga acusatória dos trâmites de um Processo do absurdo, pôde ser redimensionada como sujeito que olha de volta para os fatos históricos, e estes se tornam apenas sombras, as quais, mesmo assustadoras, passíveis de serem despossuídas, desterritorializadas. Ao perder as fronteiras de si, e uma vez que a interrogada possa olhar de volta, recuperando sua agência e tridimensionalidade, se destaca das sombras e pode passar as ver as sombras como realmente o são, apenas representações, um “espelho da memória”. E uma vez que o terror político possa ser encapsulado dentro do campo da fabulação, ele pode ser enfrentado com a mesma capacidade refabulatória em potencial com que foi criado. O pesadelo da realidade, e a realidade do pesadelo. Imagens do subconsciente do real, um real que não pôde ser enfrentado quando era pesadelo, mas que uma vez despertado de supetão pode se deparar com o que foi: apenas um pesadelo, com início, meio e fim, encapsulados pelo cinema documental, que se pretendia objetivo… Enquanto a realidade pode sempre despertar para novas reconstruções.

“Finalmente, o filme – para Metz – é em geral consideravelmente mais lógico e organizado do que o sonho. “Os filmes fantasiosos ou maravilhosos, os filmes mais irrealistas não são outra coisa que filmes que obedecem a uma outra lógica”, ao passo que o conteúdo manifesto de um sonho, “caso fosse estritamente levado à tela, formaria um filme ininteligível”. “Entre a lógica do filme mais absurdo e a do sonho, sempre permanecerá uma diferença: é que, neste último, o espantoso não espanta e, por consequência, nada é absurdo; donde justamente, ao despertar, o espanto e a impressão de absurdo” (Metz 1977, pp. 148-150). (MACHADO, 2011, p.42)

Considerações finais

Por fim, podemos concluir, por analogia, que a sequência do interrogatório da então presidenta Dilma Rousseff poderia ser considerada como uma espécie de exorcismo. Uma expulsão dos espíritos que povoaram o imaginário fílmico, mas que, após dirimidos e esgotados, retornam para suas pequenas caixas de representações políticas. Não como acusadores, tão somente reles conduítes de uma palavra enunciada ao vento, uma acusação fugaz, uma base movediça, uma disputa de poder transitória, que desembocou no governo interino do vice-presidente Michel Temer. Algo temerário e disforme, limitado e debilitante, sem destino próprio, uma colcha de retalhos das sobras, um Frankenstein. Separadas as peças do quebra-cabeça, são apenas silhuetas balançando na noite escura no quarto, parecendo se agigantar pelas proporções que suas sombras tomaram.

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Referências

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Cite-nos

Pitanga, Filippo. “O Processo”: Teatro de Sombras no documentário político brasileiro. Forca de Judas, Porto Alegre, v. 2, n. 3, 2021. Disponível em: <https://revista.judasasbotasde.com.br/232021/o-processo-teatro-de-sombras-no-documentario-politico-brasileiro/>. Acesso em 21-10-2024

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