Jogador do Flamengo sofre racismo: Alexandre Vidal/Flamengo
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Precisamos falar sobre racismo

Nisto tudo, uma coisa é basilar: a branquitude não sabe o que é sofrer racismo. Não sabe o que é entrar num recinto e ser vigiado como se fosse fazer algo de errado só por ser quem é. Não sabe o que é ser perseguido e caçado só por existir. Não sabe, mas pode tentar compreender por empatia a escutar o próximo e ajudar a quebrar esta corrente
Rio de Janeiro, Brasil
filippopitanga@judasasbotasde.com.br

À luz do assassinato covarde de João Alberto no mercado Carrefour de Porto Alegre, fruto de um persistente racismo estrutural arraigado no país e no mundo, vamos debater o recorte de dois filmes que podem oferecer uma ampla reflexão decolonialista da estética da violência policial, ao menos em como ela ainda possa ser vista na cultura de massas que tanto precisamos desconstruir.

Há muito o que se falar sobre qual tipo de linguagem antirracista é aceita pelo sistema hegemônico e qual tipo se torna invisibilizada pelo mesmo. Alguns filmes recentes, em forte sintonia sobre o tema, chegaram até a disputar ferrenhamente indicações a prêmios em temporadas anteriores, como “Infiltrado na Klan” de Spike Lee e “O Ódio que Você Semeia” de George Tillman Jr., este roteirizado por Audrey Wells numa adaptação do best-seller homônimo de Angie Thomas. Apesar de que, vale lembrar, o grande vencedor a destronar ambas estas potências acima citadas tenha acabado sendo o fraquíssimo “Green Book – O Guia” de Peter Farrelly que, apesar de também conter denúncia contra violência policial, é o único dirigido por um cineasta branco, o que já quer dizer muita coisa do sistema que recepciona estas obras.

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Tantos filmes falando sobre isto, num mesmo curto período de tempo… Ttalvez por acaso do destino, talvez por consonância com uma demanda não mais reprimida, que exige responsabilidade da sociedade em suas manifestações culturais. Janelas diferentes a proporcionar diálogo na telona e fora dela entre os filmes e entre seus espectadores, de modo a estimular mudanças em nossos modos de ver…, de enxergar e reagir à realidade que nos é posta no agora.

Nisto tudo, uma coisa é basilar: a branquitude não sabe o que é sofrer racismo. Não sabe o que é entrar num recinto e ser vigiado como se fosse fazer algo de errado só por ser quem é. Não sabe o que é ser perseguido e caçado só por existir. Não sabe, mas pode tentar compreender por empatia a escutar o próximo e ajudar a quebrar esta corrente. Isto porque só passa a pelo menos aquiescer o que seja isso, em geral, quando se abre os canais de alteridade… Não tem como vendar mais os olhos depois que a estrutura do racismo cai. 

Adentrando as obras em si, é de bom proveito começar o diálogo com o mais invisibilizado: “O Ódio que Você Semeia” de George Tillman Jr. Pois, apesar de ser significativo que estes filmes sejam de origem norte-americana, e se enquadrem como produções com grande potencial comercial, “O Ódio que Você Semeia” é uma peça chave para o entendimento almejado. Este longa-metragem comprova que uma obra realizada para o alcance de massas pode conseguir não apenas ser didática para a desconstrução da branquitude na medida certa, como reivindicatória e declaratória pelos direitos da negritude; independente do pacote bem acabado de cinema de gênero. 

Politizado e ao mesmo tempo acessível, há um polimento estético e uma elegância narrativa de grande porte, em tom de épico, da forma que todo blockbuster americano precisava aprender a seguir com este exemplar. Tanto que o próprio filme se apropria e reocupa o imaginário da linguagem de outros blockbusters, como a franquia “Harry Potter”, declarando que, mesmo com a baixa representação negra numa série de tanto sucesso, há como se tirar uma catarse que se comunique com suas diferenças justamente pelo “olhar opositivo”. Esta expressão em destaque foi cunhada pela pesquisadora e autora Bell Hooks, que teorizou sobre como uma plateia negra poderia tirar algum prazer ou identificação mesmo de filmes que não lhes contemplassem e/ou até mesmo reforçassem estereótipos negativos. Ou seja, precisamos nos reapropriar e reivindicar o cinema de objeto a sujeito! Ainda mais nos tempos atuais, onde a questão da representatividade racial se tornou mais do que nunca essencial na luta pelo protagonismo em poder registrar suas próprias histórias. Algo que já vinha ocorrendo na literatura (vide várias autoras negras citadas ao longo do presente texto) e que cada vez mais o é igualmente exigido na sétima arte.

Justamente tocando nesta troca de linguagens, o livro homônimo que deu origem ao filme homônimo “O Ódio que Você Semeia”, de Angie Thomas, é um marco nos EUA em relação ao ato de se passar o bastão entre gerações. É um reconhecimento autodeclaratório de raça para uma parcela da negritude que cresceu desde muito jovem em meio à branquitude… Branquitude esta que sempre tratou o direito como algo exclusivo, em que as diferenças precisassem ser adequadas e atenuadas apenas em benefício de um lado já prestigiado, e em detrimento daqueles em posição jurídica e legal historicamente negligenciada.

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A história de “O Ódio que Você Semeia” começa de forma introdutória naquele encontro de mundos, onde a protagonista Starr Carter (Amandla Stenberg) apresenta as duas realidades onde vive, com formas bastante diferentes de proceder… De um lado, sua família, expectativas e sonhos; do outro, um meio tóxico onde é obrigada a “embranquecer” para poder fruir dos mesmos direitos que deveriam ser para todos. Isto não quer dizer que as pessoas deveriam ser iguais e cópias umas das outras, e sim que as diferenças deveriam ser respeitadas e a lei adequada a elas… e não o inverso. Tanto a protagonista quanto seus parentes e amizades irão passar por várias situações de abuso policial – inclusive com um veículo sendo parado em via pública apenas pelo recorte racial de quem o estivesse dirigindo, gerando uma fatalidade bastante análoga ao sistema de repressão policial no Brasil. 

Isso irá mudar radicalmente a vida de todos os personagens, e quebrar as regras de um jogo perverso estabelecido antes mesmo de se dar ciência do que se estivesse jogando. Um jogo onde todos são arremessados desde que nascem a perpetuar o racismo estrutural, seja por ação ou omissão, quando todos deveriam se esforçar para vencer e sair desta imposição. Como diria a notável pensadora Angela Davis: “Não basta que a pessoa não seja racista. É preciso ser antirracista”. Ativamente, por sinal.

E, nisto, as escolhas de desdobramentos e de táticas de resistência adotadas pelo filme tocam profundamente o público brasileiro, coincidindo com a potencialização das manifestações e atos públicos como ferramenta hábil de reivindicação social (no caso, a protagonista será inspirada por uma advogada ativista interpretada pela ótima e crescente revelação Issa Rey, mais conhecida como criadora da série “Insecure” da HBO). Sob bombas de efeito moral e violência policial injustificada, iremos acompanhar a importância da voz e da palavra em unir o povo, o que pode ser tão temido por autoridades retrógradas que não querem compreender ou enxergar o direito constitucional de se manifestar por sua liberdade de expressão em benefício de algo maior. 

Vide a consciência coletiva despertada na realidade norte-americana atual em casos como o de George Floyd… Assim como também no Brasil não se deve jamais esquecer a figura política da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em 2018, e cujo crime ainda está longe de ser solucionado. A coesão e empatia gerada por este caso gerou algumas das maiores aglomerações populares em prol dos direitos civis. E o recorte feminista e o racial estavam na linha de frente deste reconhecimento, visto que Marielle era uma das poucas mulheres negras eleitas como nossas representantes na política brasileira até sua morte (quadro que começou a mudar e aumentar nas eleições mais recentes, como legado da potência política que ela simboliza).

Ainda perante o escopo da didática imagética sobre manifestações populares dentro do cinema, o filme seguinte a ser abordado aqui, “Infiltrado na Klan” de Spike Lee, também é adaptado de um livro (desta vez baseado diretamente em fatos reais), e vai regredir o relógio para a origem de um dos movimentos cruciais para entender este momento histórico: os Panteras Negras nas décadas de 60/70. 

No longa-metragem do experiente e costumeiramente revolucionário cineasta Spike Lee, num de seus melhores trabalhos nos últimos tempos, acompanhamos um policial negro infiltrado na Ku Klux Klan americana nos anos 70, numa adaptação livre e irônica da história verídica escrita pelo próprio policial Ron Stallworth em livro de título homônimo, mas acrescido de inúmeras referências do mundo pop e de registros históricos reais, assinaturas de Spike Lee. O diretor possui o talento em transformar qualquer obra em algo bastante seu, com estilo inconfundível, imerso em influências que vão desde o blaxploitation setentista ao movimento LA Rebellion.

Apesar de ser inspirado em fatos reais, o filme subverte a autenticidade na reprodução de época e trabalha de forma sarcástica. Spike Lee insere o protagonista num período onde ainda não se era reconhecido um recorte racial em instituições públicas, como a polícia ou a política. Ao invés de permitir ou consentir que o meio se tornasse o opressor, roubando a cena e violentando o personagem, como tanto já vimos na história do cinema, Lee aflora o imaginário empoderando o passado para as novas gerações que necessitam se ver melhor representadas.

Ao fazer isso, para algumas pessoas, especialmente aqueles que leram o livro e os relatos de abusos de época (ainda atuais, infelizmente), podem apregoar certa inverosimilhança à personagem de Ron Stallworth, já que ele flui muito bem pelos percalços com admirável controle da própria narrativa. Até com certo humor jocoso e ferino, usado contra aqueles que tentam manter o velho e ultrapassado status quo. Algo consonante com o que o diretor Quentin Tarantino fez em “Bastardos Inglórios”, quando colocou os judeus conseguindo sua vingança contra Hitler, num revisionismo histórico que gerou polêmica e principalmente catarses positivas para quem se sentiu representado.

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Aliás, vale ressaltar que Spike também exerce este poder de empatia em relação ao outro, sem hierarquia entre opressões (nas palavras de Audre Lorde), acrescentando um coprotagonista judeu à trama, vivido por um ator assíduo do cenário indie americano: Adam Driver. Esta personagem será também ameaçada e humilhada, guardadas as devidas proporções, quando participar da equipe policial que se infiltra na Ku Klux Klan. Sem falar na outra protagonista feminina (Laura Harrier), a qual insere a ótica da luta interseccional do feminismo negro, inspirada em personagens históricas reais como Angela Davis e Assata Shakur. E esta triangulação da opressão perante as diferenças é um ato corajoso de Spike, desta vez fora de seu lugar de fala, e que funciona justamente pelo encontro de suas diferenças do que por suas semelhanças.

Curioso que a única cena a esmorecer o controle total da narrativa, exercido até então por Ron, seja ironicamente uma violência policial injustificada sofrida nas mãos de seus próprios pares. Nesta cena, oficiais brancos confundem a ameaça nas ruas que o protagonista tentava impedir, como se a ameaça fosse ele mesmo, apenas porque era negro e seus agressores brancos. Mas isto não é nada que o filme já não tivesse antecipado, oferecendo ferramentas próprias de desconstrução, como a brilhante montagem da seqüência anterior. Nela, o cineasta desconstrói a imagem opressiva de um grupo de espectadores brancos da Ku Klux Klan, assistindo ao infame clássico racista “O Nascimento de Uma Nação” de D.W. Griffith, entrecruzando no extracampo um poderoso relato na voz da personagem de Harry Bellafonte (outro ativista imprescindível das questões raciais) sobre o covarde linchamento verídico de Jessie Washington em 1916.

Uma catarse não apenas cinematográfica, porém real, que sai das telas de um filme de 2018 e atinge em cheio um acontecimento contemporâneo como o linchamento de João Alberto pelos seguranças do Carrefour. Não é apenas cinema, é a vida como ela era em 1916… e que não pode mais ser repetida em 2020 após todo este aprendizado. O fato de estes filmes possuírem cenas de violência policial contra as pessoas negras não encerra estas obras como unicamente denunciativas, pois também possuem facetas propositivas como instrumentos de defesa contidos dentro da própria narrativa e linguagem cinematográfica, na tentativa de libertar e tentar superar este horrendo paradoxo neocolonial que resiste a perdurar. Cinema é reflexão da realidade para que possamos refabular o nosso futuro, para que pintemos a nossa tela de possibilidades diferentes das já mostradas em tantos e tantos filmes, de modo a não permitirmos nunca mais que violências como esta se tornem clichês naturalizados.

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Pitanga, Filippo. Precisamos falar sobre racismo. Forca de Judas, Porto Alegre, v. 1, n. 1, 2020. Disponível em: <https://revista.judasasbotasde.com.br/112020/precisamos-falar-sobre-racismo/>. Acesso em 21-10-2024

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