Desde as manifestações em junho de 2013, concentradas em São Paulo, em oposição ao aumento das tarifas do transporte viário e o desembolso de recursos públicos na edificação de estádios de futebol em função da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, passando pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff dois anos depois, chegando à vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, a esquerda e a direita brasileira vem personificando um cenário de radicalização no âmbito da luta ideológico-política (FAUSTO, 2017).[i]Desejo agradecer o colega e amigo Augusto Zanetti, professor de relações internacionais da Unesp, pela revisão e os excelentes comentários feitos ao presente texto
Nesta conjuntura, a batalha no que concerne as ideias centradas no delineamento e definição do totalitarismo e, mais de recente, do populismo, ambos pensados como “kampfbegrief”, “conceito de combate” (BOISARD, 2020), em decorrência do anticomunismo que vicejou durante a denominada “Guerra Fria” (1947-1991), passou a ser manejada de forma instrumental e orgânica no debate público-político, configurando o uso da memória histórica no contexto das lides que atravessam de ponta a ponta o exercício do poder.
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A utilização de conceitos do campo da ciência política, resinificados nos quadros da rememoração histórica, que abandona a dimensão do rigor fundado na preocupação da busca da verdade, sempre parcial e eivada de incompletudes, ocupou o espaço social articulado em redes. Tal estratégia narrativa foi ganhando rapidamente uma dimensão central, impensável numa sociedade tradicional, anterior ao surgimento das redes sociais. Assim sendo, se pelo lado da direita, a disputa sobre o passado acompanha variegadas estratégias interligadas, entre elas visando o esforço concentrado de produzir, sem alguma comprovação empírica, uma memória “pacificada” e consequentemente esterilizada dos crimes da ditadura militar, compartilhada por todos aqueles que se reconhecem na categoria de “cidadãos de bem”, na medida em que compõem a totalidade dos membros de uma nação marcada pelo tripé “Deus, Pátria, Família”. Por outro lado, o que mais interessa aos fins do nosso discurso, pois está ganhando bastante destaque, é a consolidação em virtude do crescimento exponencial de tendências políticas de contestação do modelo de desenvolvimento e crescimento econômico, de uma vertente que ganha apoio e reverberação positiva entre os institutos neoliberais, dada sua disposição a equipar o nazismo e o fascismo ao comunismo, no contexto do fim da União Soviética no inicio da década de noventa e das resoluções sobre a condenação dos crimes dos totalitarismos nazifascistas e comunistas, que estão sendo aprovadas pela comunidade europeia desde o inicio do século XXI.
Ao se contrapor ao campo pseudo-intelectual da direita neoliberal, objetivando viabilizar uma reação igual e contrária, o campo ideológico da esquerda implementa uma nova onda revisionista, alimentada por uma geração de jovens “youtubers” comunistas “militantes”, que incentiva diretamente ou inadvertidamente a reabilitação de Stálin, por vias transversas de um novo culto à personalidade, uma vez que volta a refletir sobre o stalinismo, no contexto da vitória perpetrada contra o nazifascismo em aliança com as nações liberal capitalistas – embora no caso norte americano estivesse vigente a orientação de cunho keynesiano, o denominado New Deal (Hobsbawm, 1996) – durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Tal resposta, no sentido de desmontar o construto ideológico constituído pelo neoliberalismo, a intitulada “Lenda Negra”, recebeu recentemente apoio do ilustre compositor de MBP, Caetano Veloso. Ela, no entanto, não possui comprovação histórica ou reconhecimento atestado em pesquisas de caráter cientifico intelectual que encontre guarida na ciência política.
Entretanto, adquire enorme repercussão, uma vez que, o neoliberalismo gera enormes descompassos no âmbito social, no que respeita as desigualdades, preservação ambiental e inclusão. No intuito de romper com esse cerco formulado pelo pensamento único uma geração em torno de trinta anos, orgânica a movimentos e partidos de extrema-esquerda, tem despendido esforços na busca da correlação entre a crítica do neoliberalismo, o marxismo e o comunismo que despropositadamente acaba por confluir na reabilitação do stalinismo, pensado como carro-chefe de um arsenal ideológico, que passa a ser uma das principais acusações movidas na teoria neoliberal, nascida no início da década de oitenta do século passado.
Se por um lado o revisionismo neoliberal permite criar uma assimetria perfeita entre o stalinismo e nazifascismo, mantendo-a ancorada aos quadros conceituais do totalitarismo tout court, por outro lado, assim sendo, a crítica ao neoliberalismo hegemônico no fim do século XX, com momentos de revisões e ajustes nem sempre eficazes ou diferentes deste em sua essência, encontra acolhida na apropriação da obra do pensador Domenico Losurdo, figura de destaque da corrente stalinista do marxismo italiano. Por ser um dos principais críticos do liberalismo e do neoliberalismo, no que concerne sua teoria e seu acumpliciamento com totalitarismo (LOSURDO, 2006; 2008), no que se refere a escravidão e o colonialismo, desencadeados e apoiados por estas orientações ideológicas, Losurdo ganha projeção no debate, envolvendo a ruptura da prisão de barras invisíveis representada pelo neoliberalismo, modalidade “aggiornada” do liberalismo clássico que emerge no século XVII na obra de John Locke (1632-1704), de forma especifica “O segundo tratado sobre o governo civil” (1690), de acordo com Maria S. Carvalho Franco (1993).
Em sua análise, Losurdo passa em revista a obra de Hannah Arendt, “As origens do Totalitarismo”, publicada em 1951 (ARENDT, 1951), que ele considera como um produto típico da Guerra Fria, senão o ponto de partida da teoria do “triunfo” da liberal democracia em oposição aos dois “inimigos” totalitários, o nazifascismo e o stalinismo. Essa leitura encontra aceitação tácita na obra do cientista politico norte-americano Francis Fukuyama na década de Noventa do século passado (FUKUYAMA, 1992), no exato momento que se dissolve a ex-União soviética (1991), sem que fosse disparado um só tiro direto entre os contendores, uma vez que as guerras ocorreram em localidades que se situavam nas franjas de seus territórios. Há, por conseguinte, no entender de Losurdo uma evidente associação entre a obra de Arendt, a exemplo, do texto “As origens do Totalitarismo”, escrito quarenta anos antes do fim da União Soviética e o triunfo do neoliberalismo celebrado no escrito de Fukuyama, no qual sentencia “o fim da história” e a vitória em nível planetário da economia de livre mercado e da democracia politica.
À luz destas questões levantadas pela apropriação e revisão brasileira do totalitarismo nazifascista e comunista de viés stalinista, o artigo quer discutir dois temas centrais no que concerne o debate hodierno sobre o neoliberalismo e o totalitarismo: 1. a obra de H. Arendt, embora influenciada pelo clima da Guerra Fria, tem uma elaboração anterior muito complexa, que não pode ser assimilada, em sua plenitude, à teoria liberal do totalitarismo; 2. a reabilitação de Stálin, sem a necessária analise do lugar ocupado pelo estalinismo no comunismo e na historia do século XX, apropriado de forma destorcida no transcurso dos debates de outros países (é o caso de Losurdo no campo do marxismo italiano e europeu) se torna um perigoso boomerang para a esquerda brasileira, a qual aparece mais preocupada em correr atrás do bolsonarismo e dos pseudo-intelectuais de direita no processo de manipulação e de falsificação da história, ao invés de iniciar a necessária reflexão intelectual e politica sobre a crise de hegemonia do PT, visando a criação de um novo projeto progressista e de uma nova classe dirigente.
Assim sendo, pretendemos articular o texto em três partes. Na primeira parte vamos resgatar a trajetória do conceito de totalitarismo no pensamento de H. Arendt e sua apropriação por uma pluralidade de autores; na segunda parte desenvolveremos uma comparação do nazifascismo e do stalinismo sob o prisma do totalitarismo; na terceira serão realizadas algumas considerações pontuais sobre a herança do estalinismo no debate da esquerda atual.
Totalitarismo: trajetória do conceito e sua apropriação na obra de H. Arendt
Longe de ser apenas uma categoria do pensamento liberal na Guerra Fria, o conceito de totalitarismo foi teorizado para pensar a essência mais profunda do século XX. Hegemonizado por forças opostas, a sua trajetória conceitual foi alvo de um debate caraterizado por um multiforme conflito ideológico-politico: na Itália e na Alemanha das décadas de vinte e trinta, entre intelectuais e políticos fascistas e nazistas e seu amplo campo de opositores antifascistas (liberais, democratas, católicos, comunistas, socialistas); no campo comunista, Leon Trótsky e os demais opositores de esquerda do stalinismo (Ruocco e Scuccimarra, 1996).
A sua hegemonização quase total pelo pensamento liberal, sobretudo aquele anglo-saxônico, aconteceu apenas no segundo pós-guerra, até que rapidamente o totalitarismo esvaziou-se da sua origem analítico-sociológica para se tornar a principal ferramenta dos ideólogos do anticomunismo durante a Guerra Fria.
Em suma, não pode ser considerado o totalitarismo – é a tese aceitável do cientista social e historiador norteamericano Abott Gleason (1995) – apenas uma ferramenta do mundo bipolar, uma vez que sua origem esta ligada aos processos de reestruturação políticas e institucional em curso na Itália e na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Em ambos os países, a grave crise que atinge simultaneamente o Estado liberal, o parlamentarismo e o pluralismo do século XIX encontra a sua representação conceptual mais eficaz no italiano “Stato totalitário” e no alemão “Totaler Staat”. Enfim, totalitarismo é criado para definir uma tipologia de “Estado Novo”, surgida na crise do liberalismo e na ruptura da Primeira guerra mundial. Este novo modelo de Estado se caracteriza sobretudo por ser o “Estado das massas amorfas”, produzidas pela modernidade, mas ao longo do caminho segue percursos diferentes, se associando a luta ideológica das democracias ocidentais contra “o Império do Mal”, e à celebração dos valores liberal-democráticos.
Desde o 1936, com o primeiro dos grandes processos de Moscovo, ano que marca uma nova onda repressiva do stalinismo, a ideia de totalitarismo, ainda confusa, começa a se espalhar entre os opositores do stalinismo, reunidos em torno da contribuição crítica de Leon Trótski e Victor Serge. Trata-se de uma elaboração conceitual tanto fundamental quanto meritória ainda de ser aprofundada. Acreditamos que o debate historiográfico atual sobre o totalitarismo stalinista não pode prescindir dela.
Para o autor da “Revolução Permanente”, 1929-1930, e “A Revolução Traída”, 1936, o stalinismo “traiu” o marco socialista impresso por Lênin a Revolução Bolchevique, uma vez que atuou uma profunda distorção da relação entre estrutura e superestrutura e transformou a burocracia em uma “casta” descontrolada e separada das massas, sobre as quais exerce um domínio total.
Nesta perspectiva, coloca-se também o escritor russo-belga Victor Serge, entre anarquismo e trotskismo. Já em 1933 Serge tinha se distanciado da Rússia estalinista, definida numa carta para alguns amigos franceses, publicada na “La Révolution Proletarienne”, “um estado totalitário, castocratico, absolutista (…), para a qual o ser humano não conta”. De acordo com Serge, seria necessário voltar aos valores genuínos da Revolução de Outubro: “defesa do ser humano. Respeito pelo ser humano. (…) Sem isso, nada de socialismo. Sem isso, tudo é falso, errado” (SERGE, 1951).
Enfim, definida sem duvidas “Estado totalitário”, tanto por Serge quanto por Trotsky, a URSS de Stalin seria uma traição da origem e da finalidade da revolução de Lênin, que continua indicando o caminho a ser percorrido pela classe trabalhadora mundial. Porem, ao contrário de Trótski , Serge chega até a questionar a raiz “objetivamente” socialista da coletivização dos meios de produção, ao teorizar uma tendência totalitária já presente no bolchevismo.
A Segunda Guerra Mundial, a agressão nazista da URSS em 1941, e a reconfiguração das alianças militares durante o conflito abrem uma época de esquecimento do conceito, pelo menos até o início da Guerra Fria, em 1947, com exceção de Franz Neumann, o teórico marxista próximo da Escola de Frankfurt. “Behemoth” (NEUMANN, 1942) continua até hoje um texto fundamental para o estudo do nazismo. A poderosa imagem do monstro do caos (Behemoth) é o símbolo do totalitarismo contemporâneo. Ao contrario do Leviatã de Hobbes que tudo governa, de forma funcional, de cima, o totalitarismo nazista é uma “policracia” – cujos aspectos jurídicos foram analisados por Ernst Fraenkel, também próximo a da Escola de Frankfurt no clássico “The Dual State” (FRAENKEL, 1941) – incomparável com as formas políticas tradicionais.
Nesta altura, o debate sobre o totalitarismo destaca os quatro elementos fundamentais das grandes teorias da década de 1950 – ideologia, terror, massificação e caos interno.
No segundo pós-guerra, o fim da aliança antinazista e a deterioração das relações soviético-americanas acelera o debate sobre a natureza dos regimes totalitários, especialmente nos EUA. Como observa A. Gleason – utilizando um material literário pouco explorado, elaborado nos EUA entre os 1940 e o inicio da Guerra Fria: “o seu renascimento em 1945 serviu para canalizar o poderoso sentimento anti-alemão no nascente movimento anticomunista e, ao mesmo tempo, facilitou a formação de novas alianças internacionais” (GLEASON, 1995, p. 61-62).
Sob o perfile do pensamento político, a consequência de tudo isso é a assimilação do nazismo, stalinismo e, em alguns casos, do fascismo em um único modelo de totalitarismo, levando o debate num horizonte metahistórico, pouco atento às peculiaridades históricas dos diferentes regimes.
Hannah Arendt na obra “As Origens do Totalitarismo” (ARENDT, 1951) escapa desta tendência dominante, inaugurando uma nova era de estudos sobre os fenômenos totalitários, uma vez que ela dialoga com a Escola de Frankfurt, com o pensamento cristão-católico de Santo Agostinho, sob a guia do seu orientador, o filósofo existencialista Karl Jaspers, sem considerar a influencia fundamental na obra dela de Martin Heidegger, Walter Benjamin, Günther Anders e do esposo Heinrich Blücher, poeta, filosofo e militante do Partido Comunista Alemão, o qual desenvolveu um papel importante na teoria arendtiana do stalinismo como desvio da tradição marxista-leninista.
Objetivo do trabalho não é tanto definir um modelo de regime político, quanto sobretudo descrever os espaços culturais, políticos e sociais, nos quais se desenvolve esta época trágica do século XX. Embora muitos elementos de análises anteriores sobrevivem no pensamento da Arendt (entre eles, a natureza “revolucionária” do totalitarismo), é radicalmente nova a reflexão sobre partido único, ideologia, terror, polícia secreta, campos de concentração e extermínio, pensados como os elementos fundamentais para garantir o funcionamento da máquina de controle estatal e social. Além disso, H. Arendt acredita que tal prática política houve apenas na Alemanha de Hitler (especialmente desde os anos 1937-1938, com a hegemonia completa da SS sobre as outras organizações policiais, os campos de concentração e extermínio) e na Rússia stalinista na década de trinta, especialmente desde 1934, com a instituição permanente das grandes purgas. Por estas rações, a filosofa se concentra sobre as aproximações políticas, económicas e sociais entre os dois regimes, em vez de destacar os pontos de diferença.
Retomando as análises de F. Neumann e E. Fraenkel, H. Arendt mostra que o sistema totalitário, longe de ser compatível com os autoritarismos tradicionais, continua a ser extremamente fragmentado, para garantir o monopólio absoluto do poder nas mãos do chefe e das elites.
Neste contexto, a diferença entre os campos de concentração e campos de extermínio desempenha um papel decisivo na definição do que é totalitarismo. As fábricas de cadáveres são o divisor de águas entre o totalitarismo e a ditadura tradicional. Enfim, o campo de extermínio é para Arendt a essência do totalitarismo, o lugar onde se desvela a sua verdade última, porque aqui acontece a transformação da natureza humana. Em outras palavras, “o campo de concentração serve a demonstrar que o ser humano, destruído pela primeira vez como uma pessoa jurídica, em seguida, como uma pessoa moral, enfim, como uma individualidade singular e única, é reduzido a um feixe de impulsos animais, apagando assim todas as traças de liberdade e espontaneidade” (FORTI, 2001, p. 39).
Estes são, essencialmente, os principais elementos da tese de H. Arendt, que se tornou até hoje um clássico sobre o totalitarismo. A sua assimilação tout court ao paradigma liberal-democrata é uma operação ideológica da ciência política desde os anos 1950 – com Friedrich e Brzezinski, por um lado (Friedrich e Brzezinski, 1956), e R. Aron por outro lado (ARON, 1965) -, que irá definir a tipologia totalitária de H. Arendt em critérios cada vez mais taxonômicos.
Nazismo e stalinismo: possiblidades e limites de uma comparação
Embora a fecundidade analítica de H. Arendt possui a vantagem de resumir em um conceito as mortes em massa nos campos de concentração nazistas e stalinista (um modelo que reconhece implicitamente o valor heurístico do confronto entre eles), não resolve as profundas diferenças entre os dois sistemas. É por isso que parece necessário fixar as diferentes teorias do totalitarismo em duas escolas principais: por um lado, a abordagem funcionalista destacando a homologia estrutural entre stalinismo e nazismo; por outro, a abordagem histórico-genética tentando encontrar nas suas origens os traços específicos de cada regime totalitário.
Se excluirmos as teorias mais unilaterais do totalitarismo, destaca-se que o modelo funcionalista recebeu a formulação mais completa na obra de Brzezinski e Friedrich (1956). De acordo com eles, o totalitarismo se caracteriza pelos seguintes elementos: partido único de massa, líder carismático, monopólio do poder do estado, aparato policial, terrorismo, controle absoluto dos meios de comunicação, economia planificada, ideologia oficial.
Trata-se de uma definição do totalitarismo compatível tanto com Alemanha nazista quanto com a URSS de Stálin. Porém, ela descreve apenas como funciona o sistema em ambos os regimes, ignorando natureza, conteúdo social, evolução e finalidade. Em outras palavras, totalitarismo ignora todas as diferenças genéticas, econômicas, sociais e ideológicas entre os dois regimes, dado que o stalinismo surgiu das contradições da Revolução Bolchevique, enquanto o nazismo chegou ao poder pela via eleitoral em um contexto histórico marcado pela derrota da Alemanha na Grande Guerra, pela crise da democracia parlamentar de Weimar, e pela crise econômico-financeira de 1929.
Além disso, o comunismo implodiu depois de sessenta anos, o nazismo durou apenas doze anos; um se baseou na economia coletivista, o outro nunca colocou em cheque o modo de produção capitalista e a propriedade privada, sendo que foi financiado e apoiado pelos grupos industriais e pelas elites dominantes.
Sob o perfile ideológico, o comunismo se coloca no mesmo horizonte progressista e racionalista do liberalismo, enquanto, o nazifascismo, produto típico da sociedade de massa do século XX, elabora uma ideologia marcada por configurações mitológicos simbólicas não necessariamente racionalistas, além de ser finalizada a criação de uma nação organicística, pensada de acordo com um principio de superioridade de uma raça a cima das outras servindo-se da ditadura permanente, do Führerprinzip e da violência.
Enquanto Hitler ou Mussolini são “líderes carismáticos”, no sentido weberiano do conceito de carisma, por criarem uma relação simbiótica e direta com as massas em busca de uma nova representação diante o fracasso do Estado liberal e a crise da Primeira Guerra Mundial, a raiz da liderança carismática de Stalin se encontra no controle capilar por ele exercitado sobre o partido-estado no contexto geral de um regime surgido nas contradições de uma revolução na qual Stálin não teve um papel de liderança, e que sobreviveu a sua morte. Não é um caso que o nazismo e o fascismo nascem e morrem com seus ditadores, enquanto o sistema soviético sobrevive quase 40 anos depois da morte de Stalin, entre impulsos renovadores e permanências do sistema stalinista, construído entre a década de 1920 e a década de 1930.
O terror tem características muito diferentes nos dois regimes. A violência stalinista possui como seu objetivo principal a população soviética, enquadrada num modelo de terrorismo generalizado, orgânico ao projeto de transformação radical das estruturas socioeconômicas do país, destruindo algumas classes sociais tradicionais (os “kulaki”), bem como o aparelho administrativo do Estado czarista, para acelerar a industrialização e modernizar a agricultura.
Pelo contrario, excluindo os militantes socialistas e comunistas, uma minoria, se comparados com a totalidade dos deportados, as vítimas do nazismo são os “não-arianos”, as categorias “estranhas a comunidade” racial–racista (Gemeinschaftsfremde). Além dos judeus, são perseguidos homossexuais, ciganos e deficientes. Em 1939, a violência nazista radicaliza quali e quantitativamente seu projeto de criação de um “homem-novo” nazista em acordo com o andamento da guerra de conquista e eliminação (conquista do “espaço vital”, destruição da URSS, do judaico-bolchevismo, dos inimigos externos, dos prisioneiros de guerra). Enfim, o terror stalinista está voltado para a sociedade civil soviética, enquanto o nazismo não atinge as elites tradicionais da sociedade, da economia e da finança.
A política externa do nazismo e do stalinismo apresentam diferenças qualitativas. O nazismo radicaliza o imperialismo alemão entre segunda metade do século XIX e Primeira Guerra mundial; enquanto na URSS, entre as décadas de 1930 e de 1950, a politica internacional não é tendencialmente orientada para fazer guerras.
Enfim, de qualidade diferente é o extermínio em Auschwitz e no Gulag. A morte por meio do gás é o êxito imediato nos campos de extermínio reservados aos judeus e ciganos; no gulag a morte é um subproduto e não o êxito final, embora ela marque profundamente e visivelmente o sistema de segregação soviético.
Enfim, o ”extermínio de raça” é diferente do ”extermínio de classe”. Trata-se de um ponto fundamental.
O conceito de totalitarismo incorporado nas rígidas e monolíticas teorias funcionalistas não ajuda a resolver a questão das mudanças internas e externas nos regimes totalitários. É, sem dúvida, o caso dos Estados comunistas após o XX Congresso do PCUS em 1956. Longe de querer exagerar o papel de Stálin na Conferencia de Yalta, bem como a “destalinização” interna, a “distensão” na política externa, o apoio aos partidos comunistas e a classe trabalhadora ocidental pelo alcance de direitos sociais fundamentais através a via democrática-institucional, deve-se reconhecer que a União Soviética desde então não tem feito nenhuma guerra mundial e que, sob Khrushchev, iniciou uma política de reformas, arrastada por várias fases até a perestroika de Gorbachev e o desaparecimento pacífico dos regimes satélites da Europa Oriental. Pelo contrario, nos regimes fascistas e nazistas a tendência é radicalizar a “guerra total”, destinada a acabar só com uma vitória ou uma derrota total.
Conclusões
Pela analise comparativa do nazismo e do stalinismo, temos mostrado que é preciso encontrar um equilíbrio entre as teorias funcionalistas e as teorias genéticas do totalitarismo. Embora a obra de H. Arendt apresente ferramentas teóricas e metodológicas fundamentais para a escola funcionalista, o resgate do conceito de totalitarismo e da sua apropriação no pensamento da filosofa alemã mostra que não é possível associa-los exclusivamente a ciência politica liberal-democrática da Guerra Fria, dado que “As origens do totalitarismo” apresenta até hoje um enorme potencial heurístico a ser aproveitado pelas ciências sociais, uma vez que convida a comparar nazismo e stalinismo, desde que sejam analisadas em profundidade as origens especificas dos dois fenômenos.
A correlação entre liberalismo e reabilitação do stalinismo que está sendo feita nos setores mais radicais da esquerda brasileira, se apropriando de forma destorcida de autores e debates elaborados na tradição do marxismo ocidental, banaliza a complexidade das ditaduras do século XX.
Se pelo lado da direita neoliberal se alimenta de forma sensacional do “uso público-politico da história”, reforçando a simetria perfeita entre Auschwitz e o Gulag, por outro lado, no campo da esquerda, a resposta é um revisionismo igual e contrário, uma vez que a apropriação do stalinismo é feita sem a necessária reflexão sobre o seu lugar na historia do comunismo e do século XX. A defesa acirrada do stalinismo em contraposição ao revisionismo da direita dificulta ainda mais o problema da criação de uma nova agenda de esquerda. Mesmo não querendo separar teoria e práxis revolucionária, o desafio é retomar o patrimônio teórico e prático do marxismo numa perspectiva compatível com o estado capitalista democrático. Parafraseando as palavras de Lucio Magri, politico e intelectual italiano, exponente de esquerda radical, “O PCI morreu, mas a Itália não esta melhor” (MAGRI, 2009), podemos dizer “o comunismo acabou, mas o mundo, e a esquerda, não estão melhores”. Tentando de interpretar as palavras de Magri: 1. o socialismo real foi trágico, mas protegeu a classe trabalhadora internacional das transformações e das crises cíclicas do capitalismo; 2. seria impossível garantir o estado do bem estar keynesiano sem o amparo da União Soviética; 3. o impulso da União soviética foi se esgotando desde a década de setenta, mas isso não justifica por um lado o revisionismo da esquerda “liberal-democrática”, ansiosa de cortar os laços com o socialismo real e se entregar ao avanço sem freios do capitalismo financeiro neoliberal, globalizado; nem por outro lado justifica o revisionismo da esquerda radical, voltado para a reabilitação do stalinismo, sem a indispensável elaboração critica deste fenômeno tão complexo.
Nesta perspectiva, o conceito de totalitarismo, limpado da sua apropriação liberal democrática e anticomunista na guerra fria, e a obra de H. Arendt não deixam de serem ferramentas teóricas fundamentais em direção de uma novo projeto cultural e político de esquerda, marcado pelo progressismo e pela renovação da sua classe dirigente.
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