Brasil volta ao Mapa da Fome: Desconhecido
4 min.

Crise política, econômica e moral: o Brasil de volta ao mapa da fome

Assim, as figuras femininas, principalmente as pobres, negras e indígenas vão sendo constituídas pela linguagem literária, do ponto de vista semântico, a partir do que lhes falta, quer seja alimento, quer sejam condições primárias de sobrevivência ou mesmo, respeito, valorização, oportunidades de acesso à educação e à saúde, entre outros direitos reconhecidos como básicos para se viver em sociedade. Então, surgem narrativas da fome no cenário da produção literária
Minas Gerais, Brasil
helienerosa@judasasbotasde.com.br

Há quem ouse afirmar que, em nosso país, não existe fome. Entretanto, o site da Agência Brasil informa que a desnutrição infantil aumentou e o maior índice foi verificado entre crianças negras. Conforme relatório da ONU, em 2021, a fome atingiu 828 milhões de pessoas. As estatísticas estão disponíveis para todos que desejarem se informar.

A respeito desse tema, lemos na publicação assinada pela jornalista Alana Gandra, datada do mês de julho do corrente ano, nesse mesmo site:

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A desnutrição entre crianças de 0 a 19 anos cresceu, no Brasil, entre os anos de 2015 e 2021, afetando de forma mais grave os meninos negros. De acordo com o Panorama da Obesidade de Crianças e Adolescentes, divulgado hoje (26), pelo Instituto Desiderata, há um crescimento da fome nos últimos anos, levando à desnutrição em todos os grupos etários, de 0 a 19 anos de idade. De acordo com o levantamento, o índice de desnutrição caiu de 5,2%, em 2015, para 4,8%, em 2018, aumentando a partir daquele ano em todos os grupos etários acompanhados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2019, essa taxa subiu para 5,6%, atingindo 5,3%, em 2021. A desnutrição entre meninos negros (pretos e pardos), entretanto, foi dois pontos percentuais acima do valor observado entre meninos brancos, ampliando a diferença a partir de 2018. O ápice foi observado em 2019 (7,5%). Em 2020, o percentual foi 7,2% e, em 2021, 7,4%.

Os dados impressionam e reafirmam pressupostos básicos do racismo – estrutural e institucional – vigente no país: aqui a fome e a pobreza nutricional têm cor. Outra questão a ser analisada é a presença, no excerto, do termo “pardo”. Essa palavra costuma ser deliberadamente empregada para camuflar a presença indígena na sociedade brasileira. Esse uso produz uma suposição equivocada em relação à quantidade de indígenas autodeclarados que compõem a nossa sociedade.

Em relação ao apagamento que o uso indiscriminado dessa terminologia induz, o filósofo e escritor indígena Daniel Munduruku esclarece:

Vale lembrar que, até a década de 1960, havia uma ideia disseminada de que os indígenas, do jeito que estava sendo conduzida a política de Estado, não chegariam a conhecer o século XXI. Tal ideia estava baseada na visão integracionista, que profetizava que os indígenas aceitariam sua condição de neobrasileiros e passariam a viver uma vida mais apropriada aos princípios da “civilização”. Talvez tudo caminhasse mesmo para esse fim, caso não houvesse uma pequena revolução que se iniciou na década de 1960 e foi protagonizada pela Igreja Católica, especialmente pela Igreja Latino Americana. Não se pode esquecer que toda a América Latina vivia problemas políticos graves. Quase toda ela estava sob a égide de regimes totalitaristas e militares, que violavam os direitos humanos com perseguições a seus opositores. Violência foi a palavra de ordem desses governantes. (MUNDURUKU, 2017, p. 97)

O autor explicita o fato histórico que culminou com o movimento chamado Teologia da Libertação e a consequente aproximação entre a Igreja Católica e algumas comunidades indígenas. Todo esse processo resultou em uma articulação nacional que trouxe visibilidade aos povos indígenas e despertou o interesse da sociedade não indígena pelas causas e demandas desses povos.

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Diante de tal constatação, compreende-se que as estatísticas referentes às populações afro-brasileiras encampam parte da população indígena do país. Assim, os movimentos de luta por direitos precisam ser fortalecidos com a união e a organização de todos esses povos, cujos discursos aparecem materializados nas produções literárias de margem. Mais notadamente nas escritas literárias de intelectuais negros e negras e indígenas.

Nessa perspectiva, a escrita feminina negra e periférica traz, para o cenário intelectual e acadêmico, a emergência de discursos historicamente silenciados pelas mídias e demais mecanismos de controle do poder. Fenômeno semelhante ocorre com as mulheres indígenas. As visões desses mundos são compartilhadas, todavia, por um grupo numeroso e heterogêneo de pessoas – excluídas da sociedade, despossuídas e aviltadas pelo poder social, econômico e político.

Nesse contexto, Lélia Gonzalez enfatiza a realidade da mulher negra brasileira: “excluída da participação no processo de desenvolvimento, ficou relegada à condição de massa marginal, mergulhada na pobreza, na fome crônica, no desamparo”(GONZALEZ, 2018, p.73). São essas vozes que, ao se imiscuírem na produção literária contemporânea, promovem rupturas significativas em um sistema de crenças e de valores já introjetados na sociedade, bem como nos princípios da produção teórico-epistemológica academicista excludente e elitista que ainda persiste nos meios intelectuais.

Assim, as figuras femininas, principalmente as pobres, negras e indígenas vão sendo constituídas pela linguagem literária, do ponto de vista semântico, a partir do que lhes falta, quer seja alimento, quer sejam condições primárias de sobrevivência ou mesmo, respeito, valorização, oportunidades de acesso à educação e à saúde, entre outros direitos reconhecidos como básicos para se viver em sociedade. Então, surgem narrativas da fome no cenário da produção literária.

Essa cruel experiência marca, indelevelmente, as memórias e as vivências das crianças, desde tenra idade, vindo a ser compartilhadas nas escrituras de autoria feminina. Como no conto “Olhos d’ Água”, em que Conceição Evaristo traz, à tona, muitas memórias com elevada carga de poeticidade e emotividade.

A escritora relata o modo como a mãe distraía as filhas da fome, por meio de brincadeiras. Nesse universo lúdico engendrado pelo amor materno, as meninas eram princesas encantadas viajando pela imaginação. Habitavam outros mundos isentos da crueldade da fome.

No conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, de Conceição Evaristo, também presente na obra Olhos d’Agua, a fome e o processo de escassez são reveladas de maneira intensa. A convivência diária com as restrições alimentares e fraquezas pela falta da ingestão calórica adequada é relatada em meio a vertigens e tonturas:

Os nossos dias passavam como um café sambango, ralo, frio e sem gosto. Cada dia era sem quê nem porquê. E nós ali amolecidos, sem sustância alguma para aprumar o nosso corpo. Repito: tudo era uma pitimba só. Escassez de tudo. Até a natureza minguava e confundia. (EVARISTO, 2016, p. 24)

Na produção poética da cordelista indígena Auritha Tabajara, também encontramos relatos de fome:

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Agora lá na cidade

Era mocinha inocente.

Sorria pra todo mundo

Que passasse à sua frente,

Mas a maldade do povo

Se fazia ali presente.

Foi ficando na cidade

Sem nada para comer.

Viu uma barraca de frutas

Foi perto para conhecer

Alguém que ao menos pudesse

Um fruto lhe oferecer.

(TABAJARA, 2018, p.16)

Seja no mundo real ou no universo da ficção, a fome é um mal que denuncia os retrocessos sofridos pela população brasileira, nos últimos anos. De acordo com as estatísticas apresentadas no início desse texto, esse problema vem se agravando a partir do ano de 2018. Um triste fenômeno que castiga com maior intensidade as populações periféricas, mais notadamente, as crianças negras.

A crise política, econômica e moral que se abateu sobre o país precisa ser contornada para que haja crescimento econômico e melhoria da qualidade de vida da população, sobretudo nas camadas mais populares da sociedade. Para que os índices vergonhosos de desnutrição, fome e mortalidade infantil não retornem aos patamares mais elevados.

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Referências

  1. COSTA, Heliene Rosa da & MAGALHÃES, Helisa Vieira. Produção Literária das Mulheres Negras na Contemporaneidade: resiliências, lutas e superação pelo estigma da fome. Em: Retratos das Desigualdades: uma abordagem interdisciplinar das injustiças sociais. Juliana Cristina Ferreira (Org.) 1ª ed. Uberlândia/MG: Edibrás, 2022.
  2. EVARISTO, Conceição. Olhos d’Agua. 1ª ed. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
  3. GANDRA, Alana. Desnutrição aumenta no Brasil; índice é maior entre meninos negros. Agência Brasil EBC. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-07/desnutricao-no-brasil-e-maior-entre-meninos-negros-aponta-pesquisa. (Acesso em agosto de 2022).
  4. GONZALEZ, Lélia. Primavera para rosas negras. São Paulo: 2018.
  5. MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando 2: sobre vivências, piolhos e afetos; roda de conversa com educadores. 1ª ed. Lorena/SP: UKA Editorial, 2017.
  6. TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no mundo. Xilogravuras de Regina Drozina. 1ª ed. Lorena/SP: UKA Editorial, 2018.

Cite-nos

Rosa, Heliene. Crise política, econômica e moral: o Brasil de volta ao mapa da fome. Forca de Judas, Porto Alegre, v. 3, n. 3, 2022. Disponível em: <https://revista.judasasbotasde.com.br/332022/crise-politica-economica-e-moral-o-brasil-de-volta-ao-mapa-da-fome/>. Acesso em 21-01-2025

127 respostas

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